Guerra na Ucrânia: As bombas da desinformação

Por Jorge Alexandre Alves*

Em paralelo à inaceitável ação militar conduzida pelos russos na Ucrânia, existe um outro conflito derivado dos eventos no Leste Europeu: A guerra da informação. Seu teatro de operações se espraia por todo mundo, de forma particular no Ocidente.

Trata-se da batalha realizada nas infovias, através das redes sociais e da cobertura feita pela mídia corporativa ocidental com o claro objetivo de construir uma “verdade” sobre o conflito e conquistar corações e mentes mundo afora. Contudo, aqui se observa que, em nome da liberdade, dos princípios do multilateralismo e do Direito Internacional, se impõe ao mundo um discurso que manipula fatos e marginaliza vozes dissonantes.

É perturbador ver no coração da civilização ocidental um dos protagonistas deste conflito se autoafirmar detentor do monopólio da verdade. Principalmente porque a Europa Ocidental e os Estados Unidos sempre se orgulharam de terem criado os direitos fundamentais do ser humano e a liberdade de expressão.

Dessa maneira, testemunhamos a enorme contradição do jornalismo praticado pela grande imprensa nos países europeus e nas Américas. Prestam-se à subserviência quando reduzem seu importante papel à condição de meros porta-vozes do governo do Estados Unidos, sendo correia de transmissão de uma leitura distorcida dos conflitos ucranianos.
Fazendo um exercício de imaginação, podemos perguntar o que os pais do Iluminismo e do liberalismo político diriam a respeito da postura da imprensa nos conflitos na Ucrânia. O que pensadores iluministas como Rousseau e Voltaire diriam do uso ambíguo da liberdade de expressão que eles tanto defenderam sendo pervertida em discurso único, cujo dissenso é inadmissível? Será que Tocqueville, que tanto exaltou a forma (por vezes agressivas) em que se dava os debates pelos jornais americanos em meados do século XIX como expressão da liberdade de imprensa, veria essa pluralidade convertida em narrativa uniforme pela mídia nos dias de hoje?

Mas os efeitos desta imposição do discurso único sobre o conflito não param por aí. Plataformas sancionam mídias russas e estão bloqueando jornalistas que apresentem contrapontos à narrativa hegemônica do jornalismo ocidental. Além disso, tudo o que estiver relacionado à Rússia tem sido vítima de perseguição e cancelamento.

Parece até que retornamos aos EUA dos anos 1950, onde se perseguia implacavelmente qualquer um acusado de ser comunista. Na Alemanha, residentes russos foram proibidos de ir a supermercados. Em Portugal, uma universidade havia cancelado um curso sobre Dostoievski, alegando não haver clima internacional para isso. Felizmente a reação foi forte fazendo os responsáveis voltarem atrás.

Há um certo clima de quase censura, proveniente talvez de uma orientação do governo norteamericano. Estamos em um paradoxo onde, pela liberdade do povo ucraniano, a livre circulação de ideias é atacada, nega-se a pluralidade de posições. A cobertura dos trágicos eventos na Ucrânia está bastante comprometida.

Ao mesmo tempo, questionamentos são silenciados. Quem se contrapõe ao discurso hegemônico é desqualificado. Foi o que aconteceu em um programa da maior empresa de comunicação do país. Um historiador radicado na Rússia, ao tentar apresentar argumentos fora da linha editorial da emissora foi sumariamente desancado por um correspondente radicado nos Estados Unidos, em um tom muito agressivo.

Se apresentar ao debate público apontando contradições da cobertura midiática, desvelando os reais interesses por trás desta versão hegemônica dos fatos é correr o risco de ser acusado de defender o governo russo e seu dirigente. Mesmo que se deixe bem claro que, neste conflito não existe lado justo. Parece coisa de torcedor de clube de futebol.

As razões de fundo da ação militar na Ucrânia já foram por mim descritas em texto anterior (https://portaldascebs.org.br/guerra-na-ucrania-topicos-para-alem-de-viloes-e-herois/), mas reduzir esse conflito simplesmente à vilania de um autocrata diabólico mascara interesses e responsabilidades de outros protagonistas deste conflito que agora se apresentam como paladinos da liberdade de um povo. A polaridade produzida pelos meios de comunicação é falsa.

Lamentavelmente, a mídia ocidental quase na sua totalidade difunde meias verdades. O faz a partir da narrativa construída meticulosamente por instituições de governo norte-americano que, na acepção de muitos autores, constituem o chamado Deep State (Dep. de Estado dos EUA, Pentágono, NSA, CIA). Eles têm sido muito eficazes em constituir uma quase unanimidade discursiva em relação ao conflito no Leste da Europa.

É um discurso simplista, feito para convencer o público pela emoção. Reduz-se a complexidade da situação na Ucrânia a certo tipo de maniqueísmo baseado no vilão e no herói; no demônio e no santo; do gigante Golias contra o frágil Golias. Beira a uma fábula messiânica.

Difundida pelos grandes jornais dos EUA (The Washington Post e The New York Times), é irradiada por prestigiosas agências de notícias. O jornalismo da grande mídia ocidental se comporta mais como uma secretaria de imprensa do governo de Joe Biden, envergonhando postulados básicos do bom jornalismo como o direito ao contraditório e o debate público de ideias.

No Brasil, a grande imprensa se comporta de forma subalterna, agindo de maneira servil, colonizada pelo discurso único gerado pela inteligência dos Estados Unidos. Todos se tornaram órgãos oficiais do Deep State norteamericano. Nem o totalitarismo stalinista foi capaz de tamanha uniformidade ao reportar fatos e transformá-los em um produto chamado notícia.

Muitas vezes há um entendimento equivocado que confunde notícia com o fato ocorrido. Somos levados a isso propositalmente pela própria cobertura jornalística. É preciso, ainda mais em um tema polêmico e complexo como este, levar em conta toda que a notícia é uma interpretação do fato, e não o próprio acontecimento em si.

Demonizar Putin infantiliza a opinião pública ocidental e embota a capacidade de entendimento básico sobre a geopolítica deste conflito. Todos os Estados têm interesses. Por que os norteamericanos agem dessa forma na Ucrânia?

Apesar da grande imprensa, não é preciso muito esforço para descobrirmos as razões. Para além das questões econômicas e da russofobia ocidental, há um fator de política interna nos EUA.

A popularidade de Biden está caindo em seu país. A vacinação travou em alguns estados e a inflação atingiu os piores índices em mais de trinta anos. No final do ano teremos eleições parlamentares que renovarão 50% do congresso americano. Pelas projeções, os democratas perderão a maioria para os republicanos.

Quando um presidente americano está politicamente enfraquecido, ele precisa recuperar sua imagem. Para tanto é preciso passar a imagem de um homem de decisão, alguém que não se curva diante dos inimigos externos. Ou seja, é preciso produzir um conflito para se autoafirmar. A Guerra ao Terror reelegeu Bush filho no começo deste século.

A questão é que se os republicanos tomarem a maioria da câmara novamente, abrirão caminho para uma tentativa de retorno de Trump à presidência. Por mais tenebroso que isso possa ser para uma parte dos americanos, ainda se trata do jogo eleitoral. Grave é a imprensa ocidental projetar essa imagem de homem forte de Biden.

Parece a maioria dos grupos midiáticos americanos estão fechados com Biden. Isso não é novidade para quem acompanha as posições políticas da grande mídia. Basta ver o que acontece no Brasil desde a redemocratização, há mais de três décadas.

Grave é o discurso único, a construção de uma narrativa que reduz a complexidade da geopolítica a um enredo digno dos quadrinhos Marvel. É perturbador constatar a forma medíocre e tendenciosa com que comentaristas e apresentadores de noticiosos reportam os conflitos na Ucrânia. Desceram ao mais baixo nível ao definir Volodymyr Zelensky, presidente ucraniano, como estadista.

Portanto, ataca-se o pluralismo, a liberdade de expressão e se distorce a realidade. Presenciamos a imposição de uma verdadeira ditadura do discurso único, estabelecida por Washington e irradiada pela imprensa em todo mundo, impondo-se à opinião pública. Os interesses norteamericanos se sobrepõem a valores éticos instituídos pela própria tradição iluminista que constituiu os estados modernos e à democracia liberal.

No Brasil e em todo ocidente sentimos os efeitos dessa uniformidade da interpretação do conflito armado na Ucrânia. Costuma-se dizer que em uma guerra, a primeira vítima é a verdade. Na batalha da informação midiática, segmentos importantes do jornalismo têm sido cúmplices no assassinato da verdade.

*Jorge Alexandre Alves é sociólogo, professor e faz parte da Coordenação do Movimento Nacional Fé e Política.

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