Convidado a participar do 7º Encontro Arquidiocesano de Fé e Política, em Belo Horizonte, no dia 11 de novembro, preparei esse roteiro para minha fala. Por recomendação médica, não pude participar, mas esse texto foi apresentado aos e às participantes do Encontro. Reproduzo-o aqui, como forma de prepararmos o 12º Encontro Nacional de Fé e Política.
É preciso, em primeiro lugar, esclarecer que “encantar” a política não é esconder a feiura da politicagem que afasta quem se pauta pela Ética, mas sim revelar sua beleza como “ciência e arte do Bem comum”. Foi o que procuramos fazer no Caderno Encantar a Política trazendo o ensinamento de Francisco. O objetivo principal era ajudar pessoas ativas na Igreja (na catequese, liturgia, visita aos doentes etc) a descobrir a Política como expressão maior da Caridade, que não podia ficar restrita a serviços internos à comunidade católica. Mas é claro que o ensinamento de Francisco, por seu teor Ético e Humanista, vale também para não-cristãos. O importante é levar mais pessoas a descobrir o sentido real da Política e praticá-la como ela deve ser praticada.
Trazemos o ensinamento do Papa Francisco, não só por sua autoridade como líder maior da Igreja Católica como porque ele apresenta a Política como a melhor forma da Amizade: a amizade que vai além da inter-relação entre pessoas que se gostam e estende-se indefinidamente – a Amizade Social. Sabemos que a amizade é cimentada por relações pautadas por dar / receber / retribuir, que criam um laço de comunidade. Assim, a Política, ao tornar-se Amizade Social, substitui as relações interesseiras do mercado – que reduz tudo a relações de compra e venda – por relações de solidariedade que criam verdadeiras comunidades.
Feito esse preâmbulo, posso enfrentar o problema que me foi proposto: quais seriam os espaços e processos políticos hoje mais necessitados de serem pautados pela Amizade Social? Não tenho resposta exata, mas posso indicar uma pista: impedir que a Política seja destruída pelo fascismo, hoje em ascensão no Brasil e no mundo. Ao tratar o adversário como inimigo a ser exterminado, o fascismo – de muitos nomes – pratica a política do ódio, do armamentismo, da guerra, do extermínio. O triste é que essa ideologia se difunde nos mais diversos setores da sociedade, inclusive nas Igrejas cristãs. Por isso, penso que nossa prioridade política hoje é contrapor-se ao fascismo.
Existem diferentes formas de fazer frente ao fascismo. Reforçar a Democracia, os Direitos Humanos, a Paz, a Sociodiversidade e outros valores humanistas é impedir o avanço do fascismo. Mas quero sugerir aqui uma forma inspirada na espiritualidade franciscana que reza “Onde houver ódio, que eu leve a Amizade”. (Troquei, para que o Amor não seja entendido de forma apenas sentimental).
Trata-se de estabelecer – ou restabelecer – espaços sociais de confiança e amizade atualmente minados pela política do ódio. Isso deve acontecer nos espaços onde cada pessoa atua: vizinhança, trabalho, estudo, lazer, Igreja, redes digitais. Por atitudes e pelas falas que valorizam a não-violência ativa, o respeito ao diferente, o diálogo. Cada pessoa pode tornar-se então “instrumento de Paz”. Paz ativa, não somente ausência de guerra ou conflito. Paz com Justiça. Sem receio de falar e ser rejeitado pelo grupo.
Talvez você que me lê conteste dizendo que esta não é uma prioridade, mas sim uma forma de ação necessária em qualquer tempo, porque é o que chamamos trabalho de base. Devo então justificar o que disse, fazendo uma brevíssima análise da conjuntura de nossos dias.
Quem já viu minhas análises terá reparado que nos últimos anos tenho insistido em situar pelo menos três conjunturas: planetária (cujo tempo se mede em séculos), geopolítica (que se mede em décadas) e política (que se mede em meses), porque a conjuntura política, imediata, é determinada pelas duas outras. Acontece que agora os três âmbitos da vida parecem estar chegando ao mesmo tempo a um ponto de mutação.
1. O tempo de emergência climática já começou. Ao final do último período glacial, há 20 mil anos, a Terra vem se aquecendo, e esse aquecimento acelerou-se desde 1750 (início da industrialização, com uso de energia fóssil) e a Terra deve chegar a 1,5° C acima da média de 1750 antes de 2030. Hoje começamos a experimentar os chamados eventos climáticos extremos (secas, enchentes, aquecimento dos oceanos etc) e eles vão intensificar-se. Seria possível evitar esse aquecimento se houvesse radical mudança na emissão de CO2, mas não é o que acontece. Ao contrário: as guerras aumentam a queima de petróleo e a emissão de CO2. Por isso, tudo indica que os desastres climáticos vão se agravar. Num contexto de calor, falta de eletricidade, seca e fome é de se prever convulsões sociais, especialmente nas grades cidades.
2. Desde o final da guerra-fria (1991, com a dissolução da URSS), parecia delinear-se um mundo multipolar (onde 4 ou 5 grandes forças geopolíticas se equilibrariam: EUA, UE, Rússia, China e Índia). Mas os EUA aproveitaram sua vitória para reforçar sua hegemonia política, militar, econômica e cultural: o mundo tinha chegado ao “fim da História”. Mas essa hegemonia foi abalada pela crise financeira de 2008, que possibilitou a emergência da China como potência concorrente e apontou uma nova configuração na ordem mundial. Os EUA reagiram militarmente a essa perda de hegemonia, o que resultou na guerra entre Rússia e OTAN na Ucrânia, e, indiretamente, no conflito armado entre Israel e Hamas.
Tudo se passa como se, diante da crise climática e pressionado pela crise financeira, o capitalismo tenha feito da pilhagem de bens-comuns sua principal fonte de lucro. Mineração, água, terra agriculturável, reservas de petróleo, tudo se torna objeto de cobiça das grandes e pequenas empresas, em busca do lucro rápido. Pressionadas pelos fundos de investimento que exigem dividendos para remunerar o capital, elas não levam em consideração os danos ecológicos e sociais de sua ação. Subvencionam a eleição de governantes e parlamentares para se blindar contra possíveis ações políticas que viessem a diminuir seus lucros.
Nesse contexto de violência generalizada, os clamores em favor da Paz são abafados pelos tambores da guerra, que ecoam pelas redes sociais e pela mídia, gerando o clima de insegurança e medo que hoje toma conta do mundo.
3. O enfraquecimento dos Estados e fascismo são as inevitáveis consequências desse quadro geopolítico e econômico. Multiplicam-se os ataques às políticas sociais (Estado mínimo, gastança, libertarianismo, segurança privada substituindo a segurança pública, aceitação de milícias como fato consumado), ao mesmo tempo em que cresce o fascismo como ideário homogeneizador onde o adversário deve ser visto e tratado como inimigo – isto é, deve ser eliminado. Nesse contexto, qualquer governo democrático é atacado e cerceado, especialmente se defende as populações mais vulneráveis ou o meio ambiente. É o que estamos vendo no atual governo Lula.
Termino perguntando: Será que esse trabalho de base, focado nas relações interpessoais conseguirá derrotar o fascismo e criar uma sociedade planetariamente justa e pacífica? Não sei, mas vivemos um tempo de mudanças tão rápidas e profundas, que é possível pensar um salto qualitativo no ajuste estrutural, uma real revolução: fim de uma era e início de outra. O atual modo de produção e consumo capitalista está esgotado: poderá ganhar uma sobrevida com a Inteligência artificial e a robótica, descartando quase todo trabalho humano, mas não é impossível que, devido à catástrofe climática que já começamos a experimentar, a espécie humana seja obrigada a descartar a economia regida pelo mercado e sua tecnologia, e se reintegre na grande Comunidade de Vida da Terra. Nessa hipótese, na Amizade Social estarão as sementes da nova sociedade. Planetária, pacífica, em harmonia com toda a Comunidade de Vida.Ou, no linguajar do Evangelho: ali estarão as sementes do Reino de Deus.
Juiz de Fora, 10 / novembro. 23