O presidente norteamericano Donald Trump, cada vez mais perto de ser vencido por Joe Biden em pleito muito disputado, recusa-se a aceitar a derrota. A despeito de um sistema eleitoral fragmentado, lento e confuso, o fato é que o mandatário estadunidense ameaça seriamente as instituições políticas de seu país. É um discurso golpista, como é inerente a extrema-direita que chegou ao poder em várias partes do mundo nos últimos anos.
Toda essa lambança política é uma vergonha para a maior potência do Ocidente. Evidencia os limites de um sistema eleitoral que permite ignorar a vontade popular por conta de regras elitistas e hoje totalmente obsoletas. É paradoxal que isso ocorra em uma sociedade que sempre se orgulhou de possuir uma sólida democracia. E gera sérias implicações para o mundo.
Hoje foi anunciado que o presidente eleito da Bolívia, Luis Arce, sofreu um atentado a dinamite. Felizmente ele e o vice-presidente estão bem. Esse evento terrível constitui um atentado à democracia e pode ser analisado a luz dos acontecimentos de momento nos Estados Unidos.
A provável vitória do Partido Democrata nas eleições norte-americanas altera muito pouco a ação geopolítica dos EUA no mundo. Biden, se vitorioso, não fará o Tio Sam renunciar aos seus interesses em nome dos direitos humanos, da autodeterminação dos povos ou mesmo da democracia. Os americanos não abrirão mão dos mecanismos de guerra híbrida que hoje operam. Historicamente, os democratas sempre foram mais intervencionistas na América Latina.
Por outro lado, as atitudes de Trump, ao não reconhecer sua eventual derrota, tem um poderoso componente narrativo. O “trumpismo” alimenta um estado permanente de confrontação social, de enfrentamento com a própria ordem instituída quando ela não lhe favorece.
Se o discurso de natureza golpista de Trump é insuficiente ainda para provocar uma guerra civil, isso não impedirá uma escalada da violência dentro dos Estados Unidos. Grupos armados, verdadeiras milícias paramilitares (com fuzis!), já estão nas ruas em várias cidades americanas. Defensores dos direitos civis e afrodescendentes poderão ser vítimas dos ataques desses tresloucados.
Esse discurso, de natureza autocrática e tirânica, serve de combustível para a extrema-direita em outras partes do mundo. O que ocorre na América do Norte hoje já tem implicações gravíssimas na América do Sul. A situação boliviana é delicada, por exemplo.
A vitória do candidato de esquerda Luis Arce, do MAS (Movimento ao Socialismo), nas eleições presidenciais do país andino não foi reconhecida pelas milícias locais. Estas começam a bloquear vias, constranger a circulação de trabalhadores e restringir a atividade de comerciantes em La Paz, Cochabamba e Santa Cruz de La Sierra.
Este foi o modus operandi usado no golpe recente que destituiu Evo Morales. A posse do novo presidente boliviano será no próximo domingo. A atitudes desses milicianos coloca em risco o novo governo boliviano antes mesmo de sua posse.
A polícia local é muito leniente com os milicianos e pouco tem feito para coibir os extremistas. Até porque muitos agentes policiais integram tais grupos. Essa direita radical é formada também por fundamentalistas cristãos (majoritariamente católicos) e pela maioria dos fazendeiros da região de Santa Cruz, fronteiriça ao Brasil.
As ligações policiais com as milícias e a postura do agronegócio boliviano (aliás, com conexões muito estreitas com seus pares em nosso território) nos remete à realidade brasileira. Por isso, a presença de grupos paramilitares armados nas ruas das principais cidades americanas e o discurso falacioso de Donald Trump tem muita força simbólica. Isso pode induzir comportamentos semelhantes mundo afora, como já ocorre na Bolívia.
O que ocorre nos Estados Unidos hoje pode nos dar uma mostra do que poderá acontecer no Brasil em 2022. O bolsonarismo pode até ser derrotado nas urnas nas eleições presidenciais. Mas será que aceitarão pacificamente entregar o poder?
*Jorge Alexandre Alves é sociólogo e professor. Atua no Movimento Fé e Política.