O que nós esperamos, de acordo com a sua promessa,
são novos céus e uma nova terra, onde habitará a justiça.
(2Pd 3, 3)
Neste mês de junho completam-se 100 dias de quarentena para grande parte da população brasileira. 100 dias é o tempo que geralmente se dá a um governo para mostrar como vai conduzir a política. No caso da pandemia do covid-19, porém, a única clareza que se tem até hoje é que o mundo não voltará a ser como foi até o ano passado. As mudanças estruturais que já estavam em curso estão reconfigurando a realidade brasileira, mundial e planetária. O que se pode perguntar agora é se a pandemia, ao aproximar a Humanidade da realidade inevitável da morte e até da extinção da própria espécie, provocará mudanças de comportamento e de rumo.
1. O Brasil, agora na triste condição de epicentro da pandemia mundial, está submetido a um governo que se ocupa em destruir o que ainda existe do Estado social-desenvolvimentista sem se importar com os preceitos da Constituição cidadã de 1988. O mês de junho inicia-se com protestos da sociedade civil, mas o núcleo de poder – político, miliciano e militar – não se mostra disposto a mudar os rumos tomados até aqui, porque conta com o apoio dos grandes e médios capitalistas, que esperam ainda obter muito lucro com as privatizações, a exploração mineral e comercial da Amazônia, e a rapina aos territórios indígenas e tradicionais.
2. O mundo vê aumentar os preparativos para a guerra. Crescem os gastos militares das grandes e médias potências, cada qual demarcando a sua área de influência geopolítica frente aos EUA, que se sobrepõe militarmente apesar de estar perdendo a hegemonia econômica, política e moral. Neste tempo de guerra de 4ª geração em que cresce a capacidade destrutiva de informação, só se sente seguro quem ignora essa realidade.
3. Enfim, nosso belo e querido Planeta Terra está se aproximando da catástrofe climático-ambiental sem que sejam tomadas medidas efetivas para evita-la. Há 5 anos Francisco publicou a encíclica Laudato si’, juntando sua voz às vozes de cientistas, lideranças mundiais e pessoas capazes de ver além de seus interesses individuais. Mas nem assim foi barrado o avanço do capitalismo que explora a Terra como se ela fosse apenas uma fonte inesgotável de lucros.
Ou seja, não há sinais de mudança para melhor: seguimos nos comportando como se, uma vez encontrada uma vacina eficaz contra o covid-19, pudéssemos retornar ao modo de vida anterior à pandemia. A Humanidade parece ignorar a realidade de agravamento do sofrimento humano: miséria, fome, mortalidade de povos e indivíduos vulneráveis, brutal concentração da riqueza nas mãos de 1% da população mundial e avanço da destruição ambiental.
Diante dessa constatação, cabe retomar algumas afirmações de Frei Betto, fundador e grande colaborador do Movimento Nacional Fé e Política, em artigo recente.
A pandemia nos obriga a rever muitos conceitos. Aliás, como acontece cada vez que recuamos de nossa rotina habitual, como em retiros espirituais, internação hospitalar ou prisão.
Ignoro se a humanidade ficará melhor após a quarentena. Não me incluo entre os otimistas, porque conheço o poder do Capitaloceno, essa era na qual a apropriação privada da riqueza fala mais alto que os direitos coletivos.
Ficou evidente a gratidão da natureza pelo sumiço dos humanos. Permitiu-a florescer em paz, purificar suas águas, liberar o movimento dos animais, respirar sem a quantidade de gases tóxicos que projetamos na atmosfera. Prova de que ela pode muito bem viver sem a nossa incômoda presença. Nós é que não podemos prescindir dela.
Um dos conceitos que deve ser revisto é o de Segurança Nacional, ainda hoje impregnado de ideologia liberal belicista. Segurança Nacional deveria significar distribuição de riqueza, renda básica a toda a população, aprimoramento do SUS, ampliação da rede de educação (com qualidade) pública e gratuita. Nosso inimigo não é um governo estrangeiro, e nem mesmo o terrorismo. É a desigualdade social, a fome, o desemprego, a escalada da violência. Nosso inimigo é a queimada, o desmatamento, a invasão de terras indígenas, o latifúndio improdutivo.
Pode ser que a pandemia nos conduza a um mundo melhor, mais solidário e menos desigual. Também pode ser que nos leve, como alerta Ignacio Ramonet, à Grande Regressão Mundial ao reduzir os espaços de democracia, destruir ainda mais os ecossistemas, agravar a violação dos direitos humanos, neocolonizar o Sul do mundo, acirrar o racismo, a xenofobia, o preconceito aos migrantes, o repúdio aos refugiados, e ampliar a cibervigilância sobre a sociedade.
Os sinais dos tempos que hoje devemos interpretar (Mt 16,3) não favorecem o otimismo. Ao contrário, parece que o espírito imundo do capitalismo está mais ativo do que antes da pandemia. Por isso mesmo, a nossa fé na promessa divina numa nova terra, onde habitará a justiça é hoje de enorme valor: ela não nos deixa esmorecer nem desistir, por maiores que sejam as ameaças contra nós.
É motivado por essa fé que a CNBB, por meio da Comissão Episcopal Pastoral para a Ação Sociotransformadora, em parceria com movimentos populares do campo e da cidade, outras Igrejas cristãs, organizações da sociedade civil – inclusive o MF&P –, povos indígenas e comunidades tradicionais, lançou o processo de construção da 𝟔ª 𝐒𝐞𝐦𝐚𝐧𝐚 𝐒𝐨𝐜𝐢𝐚𝐥 𝐁𝐫𝐚𝐬𝐢𝐥𝐞𝐢𝐫𝐚 (6ª.SSB), prevista para realizar-se de 2020 a 2022. Por acreditar que “a solução para os grandes problemas do mundo virá dos pequenos, dos excluídos, pois estes se movem com outra lógica de vida”, como afirmou o papa Francisco no 2º Encontro Mundial dos Movimentos Populares, a 6ª SSB convoca esse “grande mutirão pela vida”, que tem como eixos transversais: a economia, a democracia e a soberania.
Está, pois, em nossas mãos – os 99% da população mundial excluída do banquete dos milionários que devasta a Terra – construir uma “nova Terra onde reine a Justiça”. Está, também, em nossas mãos – os mais de 70% do povo brasileiro que reprovam o atual governo – juntar forças para livrar o Brasil de sua necropolítica e colocá-lo no rumo da Democracia. Podemos, com certeza, realizar o projeto de Deus para seus filhos e filhas, pois para isso recebemos o Espírito Santo “que renova a face da terra”.
