Por Pedro A. Ribeiro de Oliveira*
Diante do envolvimento de tantos clérigos católicos e pastores evangélicos a favor de uma candidatura que promete proteger as Igrejas cristãs contra seus pretensos inimigos, proponho uma breve apreciação histórica das relações entre Fé, Igrejas cristãs e Poder político. Focalizo principalmente a Igreja católica romana, por ser nela que vivencio a Fé cristã.
A Teologia contemporânea nos ensina a distinguir a Fé em Jesus da Fé de Jesus. Enquanto a primeira remete para a religião – conjunto de crenças formuladas em forma de doutrina que fundamenta sua prática ritual – a segunda aponta o caminho do seguimento de Jesus de Nazaré. Essa distinção deve ser entendida como ênfase sobre duas dimensões da mesma realidade que é o Cristianismo, onde convivem diferentes formas religiosas – como são as Igrejas ortodoxas, romana, reformadas e as de origem pentecostal –e diferentes formas de espiritualidade do seguimento de Jesus. Essa distinção é muito útil para focar a dimensão política da Fé cristã, antes de abordar o tema das relações entre religião e poder político.
Os Evangelhos mostram Jesus de Nazaré como alguém que, inserido na tradição do Povo de Israel, levou a fé nas Palavras de Deus até sua última consequência: a condenação à morte na cruz. Esse fato histórico não pode ser esquecido: Jesus sofreu um processo sumário conduzido pelos sacerdotes do Templo e referendado pelo delegado do império romano. Independentemente do sentido religioso mais tarde atribuído a sua morte como sacrifício redentor, Jesus foi executado como muitos outros galileus e judeus que se rebelaram contra a dominação romana no território que hoje chamamos Palestina. Foi condenado e morto por anunciar a notícia de que o reinado de Deus, incompatível com o reinado deste mundo – na sua época, o reinado de César – estava próximo. A consequência foi sua execução na cruz.
Jesus teria sido apenas um dentre os diferentes rebeldes de seu tempo, se após sua morte o grupo de seus discípulos tivesse se dispersado, como ocorreu com outros grupos que se opuseram ao poder romano. Mas uma discípula – Maria Madalena – teve a visão dele vivo e ficou de tal modo convencida de sua ressurreição, que logo transmitiu essa convicção ao grupo de seguidores: Jesus estava vivo, e com ele a promessa do Reino de Deus.
Assim nasceram as primeiras comunidades de gente que seguia o caminho de Jesus, que mais tarde deram origem às Igrejas cristãs. Essas comunidades não participaram da revolta judaica dos anos 66-70, por acreditar mais na força das convicções do que na força das armas, mas isso não as livrou de perseguições ordenadas por imperadores romanos. As portas da sociedade greco-romana só se abriram ao cristianismo após uma radical mudança na teologia cristã: o Reino de Deus devia ser entendido como promessa a realizar-se no final dos tempos; mas desde agora ele estaria aberto para acolher as almas das pessoas que aderissem à Igreja cristã. Essa virada teológica fez que já no início do século IV o cristianismo fosse aceito como religião lícita e, pouco depois, como religião do império romano.
Para deixar clara a dimensão política da Fé é preciso ter presente essa história do cristianismo primitivo e sua integração na cultura greco-romana, porque assim se constituiu a cristandade: regime que associa o poder religioso representado pelo papa ou patriarca, ao poder político exercido pelo imperador ou rei. A cristandade identifica Fé e Religião e as coloca sob a tutela da Igreja, enquanto a política é assumida pelo Estado. E assim, por mais de um milênio a Igreja associou-se ao Estado cujas armas serviam de “braço secular”. O Estado protegia a Igreja, enquanto ela o legitimava ao consagrar os detentores do poder.
Só no século XIX foi criticada essa teologia da cristandade, que entretanto resistiu até a realização do Concílio Vaticano II (1962-65). Abriu-se então a oportunidade para a virada teológica realizada pela Teologia da Libertação, que recupera o conceito evangélico de Reino de Deus como projeto para a História humana e aplica-o como bússola para a Igreja em nosso tempo. Ao romper as relações de cristandade, a Igreja da América Latina descortina ao mesmo tempo a antiga/nova forma de ser Igreja e seu antigo/novo lugar social ao lado de quem é excluído do banquete dos ricos.
É claro que essa concepção da Fé cristã que se renova ao voltar à fonte original do Evangelho, incomoda tanto os poderosos deste mundo quanto as pessoas religiosas que, apesar de sua Fé em Jesus, ignoram a Fé de Jesus na promessa de um Reino que se inicia em nossa história, alimentando quem tem fome e libertando quem sofre opressão, até que no final dos tempos a Justiça e a Paz se abracem, inaugurando um novo céu e uma nova Terra.
Juiz de Fora, 19 de setembro de 2022.
*Leigo católico, nascido em 1943, doutor em sociologia, foi professor nos Programas de Pós-graduação em Ciência/s da Religião da UFJF e PUC-Minas. É membro de Iser-Assessoria e da Coordenação do Movimento Nacional Fé e Política.