Pouca gente confia em atividades econômicas e comerciais realizadas com dinheiro do narcotráfico, das máfias, do tráfico de pessoas e animais silvestres e de diversas formas de atividades ilícitas e violentas, cujo capital é da ordem de centenas de bilhões, lavados nos setores legais da economia.
Muitos desconfiam da indústria de petróleo por causa de seu papel na deflagração de guerras genocidas, dos subornos e apoio a governos ditatoriais nos países do Terceiro Mundo, financiamento de golpes de Estado, responsabilidade no desequilíbrio climático, financiamento de cientistas negacionistas, etc.
Muitos passaram a olhar com desconfiança para as indústrias de mineração, pelos crimes de Mariana e Brumadinho e as diversas maneiras de degradação do meio ambiente e destruição da vida humana.
O capital investido nesses e em outros setores, em cuja origem se misturam dinheiro criminoso e legal, se reproduz pelo fluxo contínuo que vai de atividades ilícitas para lícitas e se materializa na ilicitude (nem sempre ilegal) das atividades industriais que desprezam a vida e a natureza em nome do lucro.
Porém, quando o capital oriundo do crime organizado, do tráfico internacional de drogas e das máfias – em uma mistura promíscua de puro valor monetário com o capital que estava investido em ações de industrias como as de petróleo e mineração – migra para o setor de fármacos e biotecnologia (por causa do contexto econômico da pandemia), com a mesma ânsia de lucro que impulsionou as corporações em que antes estavam investidos, parece que uma mágica acontece.
A atividade industrial capitalista, cuja única meta é o lucro, se transforma em “a ciência”. A origem e a razão do capital que se multiplica nessas megacorporações desaparecem e em seu lugar entra o propósito altruísta de instituições cuja meta é salvar a humanidade da pandemia.
Nenhuma desconfiança, nenhuma suspeita. Apenas a ilusão de que a dinâmica perversa do capitalismo e a origem do capital “que jorra sangue por todos os poros” (Marx) converter-se-ão em responsabilidade e respeito à vida humana nas mãos dos gestores das gigantes de biotecnologia.
E tudo sacramentado “com o carimbo positivo da ciência que aprova e classifica” (Raul Seixas).
Com um truque de ilusionismo, o sujo se torna limpo, o letal se torna promessa de vida e a irresponsabilidade se torna zelo. Diante dos que mantêm a mesma suspeita e atitude crítica com que analisavam as outras indústrias no capitalismo, muitos “progressistas” se portam como conservadores: desacreditam os críticos. Para eles, o capitalismo, nas mãos das “Big Pharma” e das gigantes da biotecnologia, purificou-se, redimiu-se, beatificou-se. Desapareceram as classes. Só existe “a ciência”.
E eis que o capital trará o que é necessário, mas ainda assim produto de um mundo real repleto de contradições, como dádiva divina entregue por meio de seus sacerdotes: a vacina! Um produto abstrato, para o qual não deverá valer a velha crítica à mercadoria.
Estaremos muito ocupados com o desejo de salvar as vidas e acabar com a pandemia para nos lembrar que o capitalismo ainda existe e que, nesse sistema, tudo é mercadoria.
Aceitemos, pois, a mercadoria, pois fomos forçados a precisar dela. Mas que ao menos a paguemos em dinheiro, não em troca de nossa consciência crítica!
A beatificação do capital pela indústria de fármacos e biotecnologia

Foto: Valor Econômico